sexta-feira, março 02, 2007

Amor em tempo de guerra


São apenas alguns minutos, durante o prólogo de Dido & Aeneas, mas é sem dúvida a imagem mais forte do espectáculo que hoje se estreia no Centro Cultural de Belém, em Lisboa: dentro de um enorme tanque, os bailarinos movimentam--se numa dança sem chão, onde os gestos não podem ser rígidos e os corpos, tal como os cabelos e as roupas, parecem flutuar, leves.

A coreógrafa Sasha Waltz gosta de colocar desafios aos seus intérpretes. Quem viu Körper, que se apresentou em Portugal em 2005, lembrar-se-á de os bailarinos em movimentos esmagados dentro de uma apertada caixa de vidro.

Aqui, Sasha Waltz sentiu-se inspirada pela viagem de uma das personagens principais, o herói Eneias, vítima de um naufrágio ao largo de Cartago e é assim que tem hipótese de conhecer a rainha Dido, por quem se apaixona. Decidiu, pois, "afundar" também os bailarinos. "Eles gostaram muito de estar dentro de água", revela, em conversa telefónica. "A água está bem quente e os músculos podem relaxar, causando uma sensação agradável. Estabeleci um padrão de movimentos com as mudanças musicais mas coreografar com exactidão, a cem por cento, isso não é possível."

O espectáculo é baseado na ópera barroca do inglês Henry Purcell (1659-1695), sobre um libreto de Nahum Tate que, por sua vez, se inspira na Eneida, poema épico escrito por Virgílio no século I a.C. Aqui se relata a história do troiano Eneias que, após o naufrágio, conhece a rainha de Cartago, Dido, a quem conta toda a história do seu povo e as suas viagens. A paixão que nasce entre eles tem, no entanto, um fim trágico, pois Eneias tem de regressar para fundar Roma. Destroçada, Dido suicida-se.

Pela primeira vez, Sasha Waltz trabalhou sobre um libreto e uma partitura fixas, e, também pela primeira vez, os seus bailarinos tinham personagens para interpretar e uma história para contar. Tudo isto podia ser interpretado pela coreógrafa como restrições à dança mas, pelo contrário, serviram para pesquisar novos processos de trabalho, encontrando um novo caminho. Esta foi igualmente a primeira vez que Sasha Waltz e os seus bailarinos trabalharam com uma orquestra, a prestigiada Akademie für Alte Musik-Berlin, e um coro, o Vocalconsort Berlin, sob a direcção de Attilio Cremonesi (ver texto ao lado)."Foi tudo muito novo", reconhece. "O que me interessou mais foi juntar, misturar todas as formas artísticas, os intérpretes musicais, os bailarinos, o coro, todos se tornaram um só grupo. Deixou de haver separação." Sasha Waltz começou por reunir músicos, cantores e bailarinos num workshop. "Trabalhei intensamente com o coro e para eles também era a primeira vez que faziam algo assim, por isso foi muito interessante descobrirmos juntos como é que poderíamos usar os corpos. Para mim, ter um corpo em movimento a cantar é muito belo, é algo extraordinário", explica. Foi assim que percebeu que o ideal seria duplicar as personagens principais, que são interpretadas por um bailarino e por um cantor. Ou, no caso de Dido, por uma cantora e duas bailarinas: "Ela é a personagem central e os seus sentimentos são contraditórios, há um conflito interior. Para tornar essa divisão mais visível criei uma intérprete para a sua alma, que representa o seu estado interior."Apesar desta divisão, cantores e bailarinos misturam-se, no palco, em quadros orgânicos. "Tivemos que ter alguns cuidados, sobretudo técnicos, porque os cantores têm que ficar juntos, não podem estar de costas, mas, de resto, estiveram sempre disponíveis para descobrir novas formas de usarem o seu corpo enquanto cantavam."

O resultado deixou-a de tal forma feliz - "trabalhar com música ao vivo é uma experiência fantástica, passa uma energia diferente para os bailarinos" - que Sasha Waltz já pensa noutras colaborações com a Akademie für Alte Musik-Berlin, agora para contar a história de outra mulher, Medeia.