sexta-feira, junho 09, 2006

Egoísta


Já lá vai o tempo em que o amor me preocupava, agora penso.
Ganho, perco, poupo tempo a pensá-lo, a senti-lo.
Olho o lago e o cisne e a flor, e digo: nunca me bastaram.
Olho as pessoas e as coisas, e digo: nunca me bastaram.
Olho-me e digo: nunca me bastei.
De que precisaria, então, para me bastar?
Para fruir da saúde, os outros, a vida?
Que me faltou, quem me impediu?
Quem me ensurdeceu à própria voz?
Porque não escutei o meu grito de socorro?
Não me estendi a mão?
Me deixei cair, despenhar?
Quem, além de mim, posso culpar?
Ás vezes, digo: foi esta vontade de ser amada!
Esta servidão à vida e aos outros!
Esta mendicância de mimos, de palmas!
Este sol, esta luz, este vinho!
Estes fricassés da minha infância!
Este pai, esta mãe, estes meus irmãos!
Este País ajoelhado, esta poesia queixosa, esta saudade trágica!
Esta, sobretudo, esta, inferioridade!
Outras vezes, penso: foi pena.
Ninguém me ter dito que não era com os outros, mas comigo,
que eu teria de viver.
Mais.
Sempre.
Inescapavelmente.
Até que a vida, enfim, me separe.
O corpo da alma, os outros de mim.
Porque não há moeda.
Poder.
Divórcio, viuvez.
Não há, sequer, invalidez. Que nos aparte, nos desmembre.
Nos liberte de nós.
Nascemos ao mesmo tempo. Morremos sozinhos.
Eu e eu.
Os meus talentos, os meus aleijões.
Os meus lamentos, as minhas pulsões.
A minha natureza, as minhas digestões.
Aprendi então, a viver comigo.
A seduzir-me, a saborear-me.
Para que a minha companhia me agrade sempre.
Que, na dificuldade de me odiar, aceite amar-me.
E que, desse amor, possa nascer novo fruto.
Não foi, aliás, facultativo.
Se o fosse, não estaria aqui.
Viver comigo é longo, interminável.
Imposto, indeclinável.
E as fugas a mim mesma têm custo.
Não basta o sangue, o mesmo sangue.
É preciso amizade. Uma grande e superior amizade.
Despede-se um amigo, derrota-se um inimigo.
Não nos livramos de nós.
Só com uma grande amizade nos suportamos.
Nos resignamos, nos perdoamos.
É preciso fomentar um sentimento.
Para carregar o mesmo corpo, a mesma casa.
A mesma carne, o mesmo querer.
Pecados, corrupções. Batotas, desilusões.
E nunca o eu se fartar de mim.
Por estar preso, cravado. Sobreposto, agrilhoado.
Condenado a si mesmo e àquilo que se chama de solidão.
Solidão?
Nunca estou só, estou a meu lado!
E deveria bastar viver assim.
Permanentemente acompanhado, apaixonado.
Sozinho, é quem se cansa de si mesmo.
Se sente um desprazer, uma doença. Precisa, então, de amar.
Tanto, tudo.
Assolapada, veemente.
E perder
Para que enfim se baste, se desprenda.
Não precise, não dependa.
E o outro não seja afinal, mais do que eu.
A possibilidade, a novidade.
A pista, a luz, a alternativa.
Porque essa reside em mim
Se nada nem ninguém me bastou o que me faltou fui eu.


para a minha querida amiga Mafalda, bom aniversário.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Já te deveria ter dito, que nem todos que meolham nos olhos me adivinham. Ja te deveria ter dito que nunca me olhaste nos olhos de forma igual, duas vezes.

MFC

10:38 da manhã  

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